28.11.08

Para fazer um talismã


Basta o teu coração
feito à viva imagem de teu demônio ou de teu deus.
Um coração apenas, como um crisol com brasas para a
idolatria.
Nada mais do que um indefeso coração enamorado.
Deixe-o na intempérie,
onde a erva entoa suas endechas de ama louca
e não possa dormir,
onde o vento e a chuva deixem cair seu látego em um golpe
de azul calafrio
sem convertê-lo em mármore e sem parti-lo em dois,
onde a escuridão abra suas tocas a todas as matilhas
e não consiga esquecer.
Jogue-o depois do alto de seu amor ao fervedouro da
bruma.
Ponha-o logo a secar no surdo regaço da pedra,
e escave, escave-o com uma agulha fria até arrancar o
último grão de esperança.
Deixe que o sufoquem as febres e a urtiga,
que o sacuda o trote ritual da alimária,
que o envolva a injúria feita com os retalhos de suas
antigas glórias.
Ou quando um dia um ano o aprisione com as garras de um século,
antes que seja tarde,
antes que se converta em múmia deslumbrante,
abra de par em par e uma por todas as suas feridas:
que as exiba ao sol da piedade, tal qual o mendigo,
que expõe seu delírio no deserto,
até que somente o eco de um nome cresça nele com a fúria
da fome:
uma incessante colherada contra o prato vazio.

Se sobrevive ainda,
se chegou até aqui feito à viva imagem de teu
demônio ou de teu deus;
eis aí um talismã mais inflexível que a lei,
mais forte que as armas e o mar do inimigo.
Guarde-o na vigília do teu peito como um sentinela.
Mas vele-o.
Pode crescer em ti como a mordedura da lepra;
pode ser teu verdugo.
O monstro inocente, o insaciável comensal da tua morte.






Olga Orozco

27.11.08

Os versos que te fiz

Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que a minha boca tem pra te dizer!
São talhados em mármore de Paros
Cinzelados por mim pra te oferecer.
Têm dolência de veludos caros,
São como sedas pálidas a arder...
Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que foram feitos pra te endoidecer!
Mas, meu Amor, eu não tos digo ainda...
Que a boca da mulher é sempre linda
Se dentro guarda um verso que não diz!
Amo-te tanto! E nunca te beijei...
E nesse beijo, Amor, que eu te não dei
Guardo os versos mais lindos que te fiz!


Florbela Espanca