29.6.09

Conversar

Em um poema leio:
Conversar é divino.
Mas os deuses não falam:
fazem, desfazem mundos
enquanto os homens falam.
Os deuses, sem palavras,
jogam jogos terríveis.

O espírito baixa
e desata as línguas
mas não diz palavra:
diz luz. A linguagem
pelo deus acesa,
é uma profecia
de chamas e um desplume
de sílabas queimadas:
cinza sem sentido.

A palavra do homem
é filha da morte.
Falamos porque somos
mortais: as palavras
não são signos, são anos.
Ao dizer o que dizem
os nomes que dizemos
dizem tempo: nos dizem,
somos nomes do tempo.
Conversar é humano.

Octavio Paz

The Smiths - The Boy With The Thorn In His Side

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23.6.09

Nictofagia


Se eu pudesse beber-te, ó noite,
Até encontrar o teu gosto,
Ou mordendo a ponta do açoite
Da tua treva no meu rosto,


Achasse a planície de lume
De que és uma aresta de estrelas
E sonhando sem peso e volume
Fosse um sonho de chão a tecê-las


E na praia de um trilo sem flauta,
Instrumento das harpas do fundo
Duma água escorrida da pauta
Da manhã mais antiga do mundo,


Me estendesses, ó noite florida
Das sementes que trazes no punho,
Uma adolescência impelida
Pelo arco das brisas de junho!

Natália Correia



19.6.09

Cantiga de Malazarte

Eu sou o olhar que penetra nas camadas do mundo,
ando debaixo da pele e sacudo os sonhos.
Não desprezo nada que tenha visto,
todas as coisas se gravam pra sempre na minha cachola.
Toco nas flores, nas almas, nos sons, nos movimentos,
destelho as casas penduradas na terra,
tiro o cheiro dos corpos das meninas sonhando.
Desloco as consciências,
a rua estala com os meus passos,
e ando nos quatro cantos da vida.
Consolo o herói vagabundo, glorifico o soldado vencido,
não posso amar ninguém porque sou o amor,
tenho me surpreendido a cumprimentar os gatos
e a pedir desculpas ao mendigo.
Sou o espírito que assiste a criação
e que bole em todas as almas que encontra.
Múltiplo, desarticulado, longe como o diabo,
nada me fixa nos caminhos do mundo

Murilo Mendes

Parabéns Chinaski


à medida que me aproximo dos 70
recebo cartas, postais, pequenos presentes
de completos estranhos.
parabéns, eles dizem-
-me,
parabéns

eu sei o que querem dizer:
depois de ter vivido como vivi
eu já deveria estar morto há muito
mais tempo

acumulei uma grande série de
asneiras, fui
descuidado comigo próprio
quase até à
loucura,
mas ainda aqui estou
curvado sobre esta máquina
neste quarto cheio de fumo,
com um grande cesto azul do lixo à minha
esquerda
cheio de caixas
vazias

os médicos não têm respostas
e os deuses estão
silenciosos

parabéns, morte,
pela tua paciência.
eu ajudei-te em tudo aquilo que
consegui

agora mais um poema
e um passeio na varanda,
está uma noite maravilhosa

estou de calções e meias,
coço devagar a minha velha
barriga,
olha para ali
olha para ali
onde a noite encontra a noite

tem sido um jogo
do caraças



Charles Bukowski
Versão de Manuel A. Domingos