27.3.11

Do supérfluo

Também as cousas participam
de nossa vida. Um livro. Uma rosa.
Um trecho musical que nos devolve
a horas inaugurais. O crepúsculo
acaso visto num país
que não sendo da terra
evoca apenas a lembrança
de outra lembrança mais longínqua.
O esboço tão-somente de um gesto
de ferina intenção. A graça
de um retalho de lua
a pervagar num reposteiro
A mesa sobre a qual me debruço
cada dia mais temerosa
de meus próprios dizeres.
Tais cousas de íntimo domínio
talvez sejam supérfluas.
No entanto
que tenho a ver contigo
se não leste o livro que li
não viste a rosa que plantei
nem contemplaste o pôr-do-sol
à hora em que o amor se foi?
Que tens a ver comigo
se dentro em ti não prevalecem
as cousas — todavia supérfluas —
do meu intransferível patrimônio?

Henriqueta Lisboa

Ontem à noite

Ontem à noite, depois da sua partida definitiva, fui para
aquela sala do rés-do-chão que dá para o parque, fui para
ali onde fico sempre no mês de junho, esse mês que inaugura o Inverno.
Tinha varrido a casa, tinha limpo tudo como se fosse antes do meu funeral.
Estava tudo depurado de vida, isento, vazio de sinais, e depois disse para comigo:
vou começar a escrever para me curar da mentira de um amor que acaba.
Tinha lavado as minhas coisas, quatro coisas, estava tudo limpo, o meu corpo,
o meu cabelo, a minha roupa, e também aquilo que encerrava o todo, o corpo e a roupa, estes quartos, esta casa, este parque.
E depois comecei a escrever.

Marguerite Duras